Não é de hoje que sindicalistas da Condsef têm alertado para os riscos impostos por uma determinada visão de Estado que pulula entre os gestores do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI).
Durante o governo golpista, a Condsef ocupou a linha de frente na luta contra a PEC 32, barrada, mas não definitivamente enterrada, que era a pura e simples destruição de todos os serviços públicos. Agora, a reconstrução do que foi destruído precisa ser norteada pela firme defesa de mais e melhores serviços públicos sem nenhuma conciliação com as exigências do capital financeiro que, em última instância, pretende reduzir o estado ao mínimo essencial para a reprodução do capital: os sistemas de arrecadação e controle, o aparato repressivo, e a justiça.
Submetida a uma intensa propaganda, a população trabalhadora, tende, com o passar do tempo, a naturalizar o léxico burocrático do Estado burguês como algo “dado”, fruto de uma atualização meramente casual dos procedimentos e técnicas administrativas. Por isso mesmo, é preciso situar esse léxico dentro da realidade histórica concreta das classes sociais em disputa, ou seja, situá-lo politicamente, e avaliar as consequências de seu emprego sistemático no plano simbólico, onde também se encontra o conflito de classe.
“Gestão” e “Inovação” não são, portanto, significantes neutros que buscam dar “eficiência” a uma máquina “pesada” que precisa cortar gastos em nome da sustentabilidade da dívida e da confiança do capital financeiro. Por mais que os meios de comunicação corporativos, os economistas e os tecnocratas de diversos tipos e tendências sigam martelando a austeridade como um desenvolvimento quase natural das sociedades contemporâneas, é preciso lembrar que ela responde à crise sem saída em que se encontra o capitalismo, sufocado pelos limites dos estados nacionais e com os grandes trustes se engalfinhando por matérias-primas e mercados consumidores. Daí a necessidade de buscar, em última instância, destruir as condições de resistência dos trabalhadores e trabalhadoras, ancoradas em formas de solidariedade construídas historicamente para enfrentar a dominação de classe.
Diversos autores têm defendido, nesse sentido, que os fenômenos organizacionais são produtos intrincados de processos sociais, culturais, psíquicos e institucionais, ou seja, produtos históricos que podem, por ação ou omissão, atuar no sentido da perpetuação das distinções de classe. Daí a ampla variedade de teorias críticas que têm alertado, em oposição às escolas estadunidenses, para a dimensão política da invasão de valores empresariais em todos os âmbitos da vida social.
Em livro publicado no ano de 2009 – A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal (Dardot; Laval, 2016), os professores Pierre Dardot e Christian Laval realizaram um profundo estudo sobre o, assim chamado, neoliberalismo e sua racionalidade, ancorada na dimensão totalizadora da concorrência. Sob a égide dessa lógica, a administração pública e seus instrumentos também foram, sistematicamente, direcionados a absorver os chamados valores empresariais. Essas novas diretrizes acarretaram profundas mudanças no significado dos serviços públicos e um esvaziamento da ideia de sujeito político.
O discurso da neutralidade e isenção ideológica do Estado, nesse cenário, é apresentado como o resultado mais imediato de uma série de desenvolvimentos oriundos do imperialismo estadunidense e inglês, e incorporado em cascata por governos ao redor do mundo a partir da década de 1990, sob o verniz da “modernização” do Estado. Essa racionalidade, advertem os especialistas, tem se introjetado em todas as relações sociais: “o homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial” (Dardot; Laval, 2016, p. 322).
A Portaria MGI n. 5.127, de 13 de agosto de 2024, publicada dia 14.08, apresenta como diretrizes para a elaboração de propostas de criação, racionalização e reestruturação de planos, carreiras e cargos, entre outras, a “geração de valor público por meio da excelência na gestão de pessoas”, “a priorização das atividades estratégicas e complexas” e “o reconhecimento do mérito individual”, ao mesmo tempo em que orienta que cargos efetivos com atribuições “com tendência a se tornar obsoletas” ou de “menor complexidade” não devam existir. O desenvolvimento do servidor na carreira também deverá observar o parâmetro do “desempenho”, incluída medição de padrões superiores aos previamente estabelecidos, e a “habilitação para o desenvolvimento de atividades mais complexas”. “Gestão” e “governança” compõem, portanto, os significantes absolutos do Estado do desempenho proposto pelo MGI.
A portaria traz também premissas com as quais concordamos, como a simplificação do conjunto de carreiras, o agrupamento daquelas que possuem atribuições semelhantes e a transversalidade. Contudo, a divisão de atividades pelo requisito da “complexidade” já indica o caminho para o aprofundamento da terceirização ou flexibilização da contratação de alguns serviços e, consequentemente, da desigualdade de direitos e benefícios entre os trabalhadores do Estado. Do mesmo modo, a uniformização de estruturas remuneratórias para cargos de mesma natureza e com “similar complexidade de atribuições e responsabilidades” poderia ser um passo importante se o viés da redução de distorções salariais não motivasse apenas a aproximação sucessiva de grupos de servidores considerados de “elite” ou autoproclamados “típicos de Estado”, mas reconhecesse a importância de todos os trabalhadores que fazem o Estado funcionar, sejam eles de apoio, de nível auxiliar, intermediário, ou “de perfil técnico ou gerencial”.
Gestão, fragmentação e competição por distintividade
Para o autor da obra Gestão como Doença Social – Ideologia, poder gerencialista e fragmentação social (Gaulejac, 2007), o “gerenciamento” vai muito além da noção de uma atividade burocrática. Caracterizado como uma tecnologia de poder, forjada entre o capital e o trabalho, possui a finalidade de obter a adesão passiva dos empregados. A “gestão”, nesse cenário, é apresentada em sua dimensão política, como uma ideologia que legitima uma abordagem instrumental, utilitarista e contábil das relações humanas: “Sob uma aparência pragmática e racional, a gestão subentende uma representação do mundo que justifica a guerra econômica. Em nome do desempenho, da qualidade, da eficácia, da competição e da mobilidade, construímos um mundo novo. Uma sociedade global, marcada por um desenvolvimento paradoxal, na qual a riqueza e a pobreza aumentam, assim como o conhecimento e a ignorância, a criação e a destruição, o bem-estar e o sofrimento, a proteção e a insegurança. A gestão, que se apresenta como um simples meio para tratar esses problemas é, de fato, uma das causas de sua aparição e de sua reprodução” (Gaulejac, 2007, p. 27).
Os termos e diretrizes reproduzidos pelo MGI, baseados no desempenho, no mérito individual e em uma noção subjetiva de “complexidade” e obsolescência apenas afirmam a experiência observada durante o processo de negociação salarial neste ano de 2024, em mesas específicas.
Preliminarmente, registramos que a luta dos servidores – na qual se integra a derrota do bolsonarismo – conquistou acordos salarias de 2023 até 2026 que, mantida a previsão inflacionária, garantem que todos os federais terão a reposição da inflação e algum ganho real. A recuperação, ainda parcial, das perdas havidas no período golpista é, repisamos, conquista da categoria que ajudou a derrotar eleitoralmente o bolsonarismo.
No entanto, salta aos olhos que, sem uma única exceção, a visão de Estado imposta em um processo fragmentado e pré-concebido fixou um modelo que tem como base um corte explícito – mesmo quando se discutem as perdas inflacionárias, idênticas para todos e todas – com base na discriminação etária, por nível de escolaridade e por atividade.
Essa visão de Estado etarista e elitista tem, infelizmente, produzido os resultados de adesão almejados, confundindo muitos setores da categoria, iludidos com a ideia de que poderão estar entre “os escolhidos” para fazerem parte dessa suposta “elite”, desde que consigam demonstrar a própria distintividade e a suposta natureza extremamente complexa de suas atribuições, o que sempre se dá em comparação com os demais. A competição como forma privilegiada de organização da racionalidade no capitalismo financeiro é, portanto, estimulada dentro do Estado por uma política salarial que impõe o “todos contra todos”.
Servidores ocupantes de cargos vistos como “operacionais”, “pouco complexos”, “pouco estratégicos” ou “obsoletos”, em alguns casos oriundos das camadas mais empobrecidas da classe trabalhadora, têm sido discriminados com negociações diferenciadas negativamente e recomposição salarial rebaixada. Os que acham que podem se beneficiar dessa lógica, voltam-se a si mesmos e recorrem à hierarquização e à meritocracia como forma de justificar sua posição “superior”. De um lado ou de outro, a ideia de fracasso individual e a autocobrança excessiva acarretam profundos danos psicossociais e modulam ambientes de trabalho hostis, com trabalhadores previamente estratificados entre merecedores e não merecedores; produtivos e não produtivos; modernos e obsoletos.
Esse quadro de elitização do Estado é ainda reforçado por um recrutamento centrado nas camadas sociais privilegiadas, o que se dá em virtude da forma como se realizam os concursos: acabando com os cargos de nível auxiliar e intermediário, onde está a maioria do povo brasileiro; apontando para a flexibilização da contratação de cargos “menos estratégicos”; recusando o necessário debate sobre a implementação, no serviço público, de cotas sociais; recrutando direta e exclusivamente para cargos de nível superior, como se “passar em concurso difícil” fosse suficiente para formar alguém cujo trabalho é servir ao público! A tendência é, com o tempo, ser construído um servidor de costas para os verdadeiros interesses e necessidades da população.
Por defendermos um Estado que atue pela redução das desigualdades sociais, que combata a concentração de renda e que represente, em seus quadros, a diversidade da população brasileira, é que trabalhamos pela horizontalidade das lutas, portanto, pelo sindicato geral de servidores e empregados públicos federais. A resistência a esse processo de erosão da solidariedade de classe e entre gerações, meticulosamente inoculado pelo governo, está em nossa capacidade de nos organizar politicamente e em unidade para enfrentar as políticas elitistas e subordinadas à dominação do capital financeiro, em todas as suas dimensões.
Mônica Carneiro é servidora da Funai e diretora da Secretaria de Imprensa e Comunicação da Condsef/Fenadsef