“Vivíamos diariamente com o BHC”, relatam sucanzeiros do RS O Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos Federais do Rio Grande do Sul (Sindiserf/RS) ouviu os relatos dos diretores que foram sucanzeiros e combateram o Barbeiro, transmissor da doença de Chagas no RS. Conhecer essas histórias é fundamental para entender a importância da aprovação da […]
“Vivíamos diariamente com o BHC”, relatam sucanzeiros do RS
O Sindicato dos Servidores e Empregados Públicos Federais do Rio Grande do Sul (Sindiserf/RS) ouviu os relatos dos diretores que foram sucanzeiros e combateram o Barbeiro, transmissor da doença de Chagas no RS. Conhecer essas histórias é fundamental para entender a importância da aprovação da PEC 101/19
As equipes eram formadas conforme a capacidade dos automóveis usados. Além dos servidores, era necessário levar todos os utensílios para acampamento, cama, fogão, comida, baldes e o mais importante: os venenos: o inseticida DDT (Dicloro Difenil Tricloroetano) e o BHC (BenzeneHexachoride), usados no combate e controle de endemias, como a dengue e a malária, e o Triatoma Infestam, mais conhecido aqui no RS como Barbeiro transmissor da doença de Chagas. Além do DDT e do BHC, mais tarde também usaram o Malation, K-othrine e Cypermetrina. Quando se chegava ao destino, as equipes se alojavam em pavilhões de igrejas, escolas ou até mesmo em casas desocupadas e ali ficavam durante os dias necessários para o trabalho, que poderia chegar a meses.
O BHC, veneno mais utilizado aqui no estado, vinha num saco de 60 quilos com papel reforçado. Assim que a embalagem era aberta, os servidores já inalavam o pó. Na década de 1970 e 1980 não havia Equipamentos de Proteção Individual, a única recomendação era que trabalhassem com manga comprida e a Sucam fornecia o tecido para que os servidores providenciassem a roupa, o capacete era tipo um chapéu de fibra, que depois foi substituído por um de alumínio. Para o preparo, colocavam 350 gramas num balde de metal e com um litro de água faziam uma massa homogênea, completavam com cinco litros de água e jogava dentro de uma bomba, usavam mais cinco litros de água no balde, mexiam bem para não deixar nenhum resíduo e colocavam na bomba, que eram carregadas nas costas dos servidores.
O BHC vinha embalado em um saco de papelão bem reforçado (semelhante aos sacos com cimentos que conhecemos até hoje) e pela manhã, os responsáveis abasteciam o balde de lona com o BHC. Esse balde de lona era carregado no balde de zinco no qual era preparado a composição a ser borrifada. Mais tarde foi mudado isso. Em um local escolhido pela chefia, embalavam o BHC em saquinhos de plásticos, pesado e distribuído para as equipes pelos inspetores já em doses certas. Para o trabalho de pesagem, não era tomada nenhuma providência com relação à saúde do guarda de endemias. Cada um dos servidores, escalados para essa tarefa trabalhava uma hora e era substituído por outro que voltava à pesagem logo mais e assim por diante.
A borrifação das paredes era de cima abaixo e o leque que saia do bico da haste era de 60, 80 centímetros, respingando nos servidores que também respiravam o inseticida. Antes, a casa para ser borrifada passava por uma preparação, afastavam os móveis das paredes, tudo era puxado para o centro do cômodo e protegido com lençóis, principalmente na cozinha, os utensílios e alimentos tinham que ser muito protegidos. Os moradores só podiam recolocar as coisas no lugar após o veneno secar.
Numa área urbana, cerca de 20 casas eram borrifadas por dia, na área rural, eram 10, 12 residências. A equipe passava o dia fazendo isso. O chefe de equipe deixava os servidores na primeira casa por volta das 8h da manhã, eles passavam o dia a pé e por volta das 17h, voltavam para o acampamento.
Assim era a rotina dos servidores da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) no combate ao Barbeiro no RS. E repetidas inúmeras vezes até a eliminação total do inseto em determinada localidade.
“As narinas de todos nós ficavam branca de pó e assim ficamos expostos por décadas, inclusive nossos familiares como esposas, mães, filhas porque conviviam conosco e lavavam nossas fardas”, recorda o ex-servidor da Sucam e conselheiro fiscal do Sindiserf/RS, José Francisco Santin.
O secretário adjunto de Finanças do Sindicato, Ary Otávio Canabarro dos Santos, salienta que havia muito Barbeiro no estado. “Era demais, as pessoas não tinham noção como tinha, embaixo dos colchões, nos cantos, frestas nas casas de madeira do interior, havia casas com um dois anexos e galinheiros, galpões, era tudo tomado de Barbeiros”, recorda.
O conselheiro fiscal do Sindicato, José Nede Ferreira Goulart, destaca um fato marcante. “A equipe estava trabalhando e os vizinhos gritando, quando chegamos lá tinha um senhor caído na lavoura e a mulher na volta chorando dizendo que tinha morrido. Perguntamos o que havia acontecido e eles falaram que o cidadão tinha a doença de Chagas e com coração muito crescido, não podia estar trabalhando na roça. Então era isso, nós trabalhando e as pessoas morrendo do lado.”
“Eu ingressei na Sucam em 1984 e fui exposto ao uso direto com venenos perigosos, que ofereciam alto grau de periculosidade para a saúde dos servidores. Além disso, os salários atrasavam por até três meses. Eu residia em Cachoeirinha e trabalhava na região das Missões, permanecendo às vezes dois meses longe de casa e consequentemente sem contato com a família”, relata José Adair Lopes Araújo, que segue na ativa e atualmente está lotado na DIESP/SUEST-RS.
Porém, o trabalho dos servidores da Sucam não se limitava ao combate do Barbeiro. Havia a vistoria nas casas, o levantamento geográfico que mapeava as regiões, preenchimento dos relatórios, as análises dos Barbeiros, acompanhamento de quem tivesse a doença de Chagas e um trabalho educativo, onde os servidores realizavam seminários nos municípios sobre a doença de Chagas, dengue, febre amarela.
No RS, a atuação da Superintendência era dividida em duas regiões. O Distrito Sanitário 1, com sede em Santa Maria, abrangia metade do estado, de Porto Alegre até Uruguaiana. De Tupanciretã para cima, era Distrito Sanitário 2, com sede em Santa Rosa.
“Eu entrei bem jovem para a Sucam e aprendi muito, passei muito trabalho, fomos muito judiados. Mas valeu a pena, foi uma escola, sofríamos muito assédio moral, era quase um regime de quartel”, diz Nede.
De acordo com Ary Otávio, o reconhecimento de que era uma atividade insalubre e que os servidores precisavam de equipamentos de proteção individual demorou muito tempo para vir. “Acho que uns 15 anos depois que entrei”, acredita.
José Adair ressalta que o contato com os venenos causaram muitos problemas de saúde e que somente agora estão vindo à tona. “No ano 2000 fomos descentralizados e nos espalharam pelas Coordenadorias Regionais de Saúde do estado, alguns colegas se aposentaram e muitos outros faleceram, certamente por consequência do uso dos venenos”, declara.
“Nos alojamento comíamos e dormíamos junto com nosso armamento de guerra e as bombas de borrifar, os baldes de zinco, bornal de lona com BHC… Esta era a vida de um sucanzeiro de norte a sul do Brasil”, diz Santin.
Esperança para os sucanzeiros – Diante desses danos, a PEC 101/19, de autoria do deputado federal Mauro Nazif (PSB-RO), busca reparar as consequências da intoxicação, ao garantir plano de saúde aos servidores da ex-Sucam, admitidos até 31 de dezembro de 1988, e que tiveram contato com produtos tóxicos no combate e controle de endemias.
As consequências dessa intoxicação mais comum são o câncer de cabeça e a leucemia, além disso, a maioria dos trabalhadores não era submetida a exames regulares e até hoje continuam desassistidos em questão de saúde e temendo uma morte precoce.
A PEC 101 justifica ainda, que a grande maioria desses profissionais está sem assistência médica e tratamentos especializados por questões financeiras, como baixos salários, situação que agrava a qualidade de vida desses trabalhadores. Agente de saúde pública, guarda de endemias, motorista e condutores de lancha são os cargos contempladas pela Proposta.
O secretário de Relações Intersindicais e Parlamentares do Sindiserf/RS, Marizar Mansilha de Melo, coordenador da Região Sul na Comissão Nacional dos Intoxicados da Condsef/Fenadsef garante que a luta dos sucanzeiros é para chamar a responsabilidade do estado “para esses verdadeiros heróis que destruíram sua saúde em detrimento do povo brasileiro.”
Ele defende que as esposas e pensionistas também tem direito ao plano de saúde, pois tinham contato com o BHC através das roupas dos companheiros. “Por isso, a PEC 101 é muito importante é necessária, pois busca reparar um dano histórico”, afirma Marizar, destacando a coragem do deputado Mauro Nazif em propor a matéria.
“A nossa luta em Brasília é constante e coordenada pela Condsef e seus sindicatos filiados, como o Sindiserf/RS. Realizamos visitas em todos os gabinetes em busca de apoio. E vamos continuar até que consigamos essa conquista”, promete ele.
Tramitação – A proposta já passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania A instalação e aprovação na Comissão Especial é o próximo passo para que a PEC avance e vá à votação no Plenário da Câmara. Após a tramitação na Câmara, a matéria segue para o Senado Federal.
No início de junho, a Comissão dos Intoxicados chegou a se encontrar com o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). Na ocasião Lira se comprometeu a instalar Comissão Especial que vai debater a PEC 101/19.
Sucam – Criada em 1970, a Sucam é o resultado da fusão do Departamento Nacional de Endemias Rurais (DENERu), da Campanha de Erradicação da Malária (CEM) e da Campanha de Erradicação da Varíola (CEV), herdou experiência e conhecimento acumulados, ao longo de várias décadas, de atividades de combate às endemias de transmissão vetorial, que transformaram a Sucam no órgão de maior penetração rural no país. Não há localidade no interior do Brasil, por mais remota, que não tenha sido periodicamente visitada por guardas da Sucam, extinta em 1991.
Fonte: Sindiserf/RS
Fotos: Acervo pessoal dos entrevistados