Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional a Proposta de Emenda Constitucional 32, que objetiva implementar modificações estruturantes da administração pública, envolvendo União, Estados, Municípios e Distrito Federal.
Passadas três décadas de vigência da atual Constituição Federal, constata-se que seu texto já foi objeto de mais de uma centena de emendas, o que equivale dizer que, a cada quatro meses, desde 1988, houve a aprovação de uma nova emenda constitucional.
Não se desconsidera o fato de que o texto da Constituição deve ser adaptado à evolução do meio social ao qual está destinado a incidir. No entanto, é possível afirmar, diante da excessiva quantidade de emendas acima referida, que a intenção por trás dessas modificações na Constituição nem sempre está legitimada pelas necessidades sociais, mas, sim, tem por objetivo uma acomodação das suas normas a interesses segmentados, pautados em políticas momentaneamente predominantes no cenário político, muitas vezes escoradas em meros subjetivismos de agentes que se encontram, em trânsito, ocupando cargos de natureza pública.
A Constituição Federal de 1988 é o marco definidor da democracia brasileira contemporânea, pois sacramentou juridicamente uma nova realidade, incluindo no seu texto um extenso catálogo de direitos e garantias fundamentais, nele contemplados direitos individuais, coletivos, políticos e sociais.
Frente ao cenário político e social que emerge da Constituição, o Estado brasileiro está juridicamente direcionado à concessão e à realização de direitos, e não à retração e fragilização de direitos, visto que do contrário não haveria meios de promover a correção das distorções vivenciais que assolam historicamente a sociedade brasileira. A maior ou menor equalização social entre os cidadãos está diretamente relacionada com o nível de engajamento estatal necessário para a consecução das promessas previstas no texto constitucional.
Em razão disso, incumbe aos agentes políticos, sem distinção, envidar esforços para combater os fatores que implicam desigualdade e vulnerabilidade social, exigindo-se deles medidas destinadas a erradicar os respectivos efeitos.
Dito isso, a PEC 32 significa uma verdadeira anulação da estrutura prestacional do Estado brasileiro.
O primeiro aspecto a considerar diz respeito à previsão contida na PEC 32 de agregação de novos princípios ao elenco do art. 37 da Constituição Federal, destacando-se entre eles o chamado princípio da subsidiariedade da administração pública.
É possível afirmar, desde lodo, que tal princípio conduzirá a uma retração da funcionalidade da administração pública, na medida em que sua atuação, no tocante aos serviços públicos, ocorrerá somente em um nível secundário, quando a atividade demandada pela sociedade não for realizada através de outros meios, como sucederá com os contratos de cooperação com organizações privadas previstos na proposta, no âmbito dos quais ficará autorizado, inclusive, o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, segundo redação do caput do art. 37-A, a ser acrescentado à Constituição.
A PEC estabelece também a substituição do regime jurídico único e dos planos de carreira dos servidores da administração pública por um regime jurídico de pessoal, compreendendo novas modalidades de vinculação funcional, nomeadamente: a) vínculo de experiência, como etapa de concurso público; b) vínculo por prazo determinado, para atendimento de necessidades temporárias do serviço público ou para o exercício de atividades sob demanda; c) cargos com vínculo por prazo indeterminado; d) cargos típicos de Estado (a proposta não define quais serão esses cargos); e) cargos de liderança e assessoramento, destinados a atribuições estratégicas, gerenciais ou técnicas.
A supressão do regime jurídico único consubstancia uma regressão ao período anterior à Constituição de 1988, quando vigorava o sistema dúplice de vínculos jurídicos, com servidores submetidos ao regime estatutário e outros sujeitos ao vínculo celetista, situação que era causa de distorções no tratamento isonômico dos servidores públicos.
Por outro lado, as carreiras do serviço público, com suas regras fixadas em lei, embora não sejam lineares na concepção de direitos e deveres das diversas categorias que integram o serviço público, o que se mostra mais acentuado no âmbito federal, constituem atualmente uma forma de garantia à evolução funcional dos trabalhadores frente à alternância dos gestores políticos.
Outro ponto problemático da PEC 32 é o que prevê nova redação ao art. 41 da Constituição, através do qual a estabilidade será assegurada apenas aos servidores ocupantes de cargos típicos de Estado, após o término do vínculo de experiência, desde que permaneçam por um ano em efetivo exercício no cargo, com desempenho satisfatório. Objetivando reduzir o impacto imediato da modificação, a proposta contém uma norma de transição, garantindo a estabilidade aos servidores investidos em cargo efetivo até a data da entrada em vigor do chamado regime jurídico de pessoal.
Na redação atual do referido dispositivo, a estabilidade é alcançada indistintamente a todos os servidores após três anos de efetivo exercício de cargo de provimento efetivo.
O debate acerca do assunto deve levar em conta que a estabilidade, embora beneficie de forma imediata o servidor público, constitui, em última instância, uma garantia à administração pública de qualidade. Isso porque a ausência de mecanismo que impeça a inconstância e a irregularidade do quadro funcional do Estado, tornando-o vulnerável às oscilações políticas que se sobrepõem a cada pleito eleitoral, conduz a uma depreciação subjetiva da atividade prestacional.
Nesse sentido, percebe-se que a estabilidade, os planos de carreira e as políticas de aprimoramento dos atores incumbidos de executar os serviços ao cidadão, são aspectos que se complementam, pois eles convergem, quando bem administrados os fins públicos, para a qualidade desses serviços. A expressa vedação ao desligamento dos servidores por motivação político-partidária, como previsto na PEC 32, configura algo inócuo diante das dificuldades práticas de comprovação das causas implícitas que levaram a um desligamento com tal motivação.
A PEC também amplia os poderes presidenciais, ao autorizar a criação, fusão, transformação ou extinção de ministérios e de órgãos diretamente subordinados ao presidente da República, observados os limites definidos em lei, assim como faculta a extinção, transformação e fusão de entidades autárquicas e fundacionais, neste caso mediante decreto autônomo, sem qualquer vinculação a parâmetros legais.
O processo legislativo hoje necessário para extinção de ministérios retrata uma garantia de que as respectivas decisões, que afetam funções nucleares da administração federal, serão debatidas no âmbito do Congresso Nacional. Esse procedimento assegura, ademais, a necessária perenidade às instituições públicas e, consequentemente, resguarda a continuidade dos respectivos serviços prestados ao cidadão.
A proposta aqui em debate distorce a ordem das coisas, pois a excessiva concentração de poderes na figura do presidente da República implicará que as instituições sejam ajustadas às políticas momentâneas do Chefe do Executivo, quando, ressalvadas situações excepcionais, deveria se dar exatamente o contrário, mediante ajuste dessas políticas às instituições incumbidas de executar o serviço público.
Qualquer iniciativa de melhoria dos serviços públicos deve considerar que os agentes públicos não são privilegiados, mas, sim, atores que efetivam os deveres prestacionais consignados no texto constitucional.
Diversamente de pretensões reformistas e redutoras, mostra-se impositiva, isto sim, a manutenção perene e até mesmo o aprimoramento das estruturas públicas e dos mecanismos executórios que conferem efetividade aos deveres prestacionais expressos no texto da Constituição, que se encontram constantemente fragilizados em razão das dificuldades orçamentárias amplamente conhecidas, situação que denota um estado de recorrente inconstitucionalidade induzido pela incapacidade resolutiva dos próprios gestores políticos.
A PEC 32, amparada na retórica ultrapassada de minimização do Estado, concepção que não se ajusta os valores humanistas acolhidos pela Constituição, fragiliza e suprime instrumentos jurídicos que se constituem em garantias de efetiva execução dos direitos e políticas públicas que o Estado brasileiro se encontra obrigado a prover à população.
Marcelo Garcia da Cunha é a advogado do Sindiserf/RS