A reforma administrativa entrou novamente no radar político por impulso da presidência da Câmara dos Deputados, com a criação de um grupo de trabalho (GT) para discutir seu escopo até 11 de julho. O objetivo inicialmente traçado, de forçar a redução de gastos com a burocracia, foi afastado. A melhoria do desempenho da máquina do Estado e de seus servidores está no centro do projeto, que vislumbra até mesmo a adoção de uma Lei de Responsabilidade e Resultado para o serviço público.
Coordenador do GT, o deputado Pedro Paulo (PSD-RJ) diz que o propósito é amarrar um marco regulatório para o funcionamento da máquina estatal que contemple inovação tecnológica e montagem de indicadores transparentes do serviço público. “Sou o mais liberal e fiscalista do Congresso. Mas esta não é uma reforma focada no ajuste fiscal, embora possa resultar em queda de gastos ao longo do tempo.” A visão do deputado coincide com a da ministra da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI), Esther Dweck. “Reforma administrativa para aumentar a eficiência do Estado não pode ser confundida com ajuste fiscal e muito menos com retirar recursos da saúde e educação”, defende.
A equipe cravará os temas da reforma e definirá os instrumentos legais mais adequados para abordá-los: Proposta de Emenda Constitucional (PEC) e leis complementares e ordinárias. Há dois princípios sacramentados: a estabilidade do servidor público concursado seguirá imaculada, e a PEC 32/2020, proposta do governo de Jair Bolsonaro que a flexibilizava, não balizará ao GT. “A estabilidade não pode acabar, assim como não se pode reduzir os direitos do servidor. Olhá-lo como vilão e causador da ineficiência do Estado é um equívoco”, diz Pedro Paulo.
O foco será na melhoria da eficiência da máquina pública e dos serviços à população. A proposta de uma Lei de Responsabilidade e Resultados envolverá a inclusão obrigatória de metas em toda nova política pública, para permitir a mensuração da eficácia delas e das equipes que as formularem e executarem. O deputado defende, nesse âmbito, a inclusão de punições e bonificações, nos casos de fracasso ou êxito. “Isso significa mudar a lógica das políticas públicas com base na meritocracia.”
O grupo dá como certa a regulamentação de dois princípios constitucionais incluídos pela reforma de 1998: a obrigatoriedade da avaliação de cada servidor e a demissão por insuficiência de desempenho. Há convicção no governo e no GT sobre a necessidade de criar novas etapas de ascensão nas carreiras públicas e de atrelar a escalada ao desempenho do servidor, e não ao tempo de trabalho.
Na agenda estão também disciplinamento do trabalho remoto, concursos unificados para diferentes carreiras – já adotados pelo MGI – e contratação de funcionários temporários, pelo regime CLT, para suprir demandas de órgãos que hoje dependem de provas específicas. “Há um engessamento no serviço público, ruim para o Estado e para o servidor. É preciso maior flexibilidade para atender escolas, hospitais e até mesmo para apagar incêndios na máquina administrativa”, diz Pedro Paulo.
Em vários tópicos, porém, o projeto omite mudanças silenciosas executadas ou em estudo pelo MGI. “Nestes últimos dois anos e meio, o ministério tem adotado mudanças infralegais para a busca constante da melhoria da eficiência, como a criação de carreiras transversais no serviço federal, a interação dos sistemas de áreas afins do governo e o programa de avaliação do desempenho do servidor”, diz o secretário extraordinário para a Transformação do Estado, Francisco Gaetani.
Segundo ele, o diálogo do MGI com o GT da Câmara tem sido permanente, sobretudo para a melhor compreensão da complexa burocracia brasileira. “Há nuances no serviço público. Ao lado de ilhas de eficiência, há instituições novas, estatais que se regem por parâmetros privados e áreas de difícil mensuração da eficácia, assim como setores cujos resultados são dificultados por contingenciamentos orçamentários”, explica.
O conjunto de temas reunidos pelo grupo de trabalho mostra-se em linha com propostas da sociedade civil, como a defendida pelo ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, pelo professor de direito da FGV Carlos Ari Sundfeld e pela economista Ana Carla Abrão. Em especial, as abordagens sobre preservação da estabilidade, adoção da aferição do desempenho do servidor e contratações temporárias.
A Lei de Responsabilidade e Resultados, para Sundfeld, será uma peça essencial. “Não haverá avaliação adequada dos funcionários públicos sem metas setoriais e para as políticas adotadas”, afirma. “No fundo, essa lei trará uma avaliação da capacidade de o Estado prover os serviços à população e do quanto desperdiça em recursos humanos”, completa.
Mas há ressalvas e resistência de entidades sindicais em torno especialmente das avaliações de desempenho e da contratação de temporários. Para Cristiano Machado, diretor da Fenasps, que abarca servidores da Saúde, Trabalho, Previdência e Assistência Social, melhor seria a adoção de medidas para a valorização das carreiras e dos servidores concursados e forte investimento em tecnologia.
“Como se propõe, numa reforma, avaliar o desempenho de um servidor que trabalha com computadores de 20 anos atrás e sem recursos mínimos?”, questiona Machado. “É uma ilusão pensar que o Estado brasileiro está inchado e que a produtividade do servidor se mantém baixa”, completa, ao alertar para um longo período de greves enquanto o tema estiver em pauta.
Os supersalários também estão sob os holofotes da reforma. O teto constitucional, de R$ 46.366,19, foi extrapolado para mais de 90% dos integrantes das cúpulas do Judiciário e do Ministério Público, devido a gratificações e “penduricalhos”, com custo anual de R$ 11,1 bilhões em 2023, segundo o Movimento Pessoas à Frente. A cifra se concentra nessas duas carreiras porque 0,7% dos profissionais do Congresso receberam salários acima do teto institucional; no Executivo federal, 0,14%. Subsídios recebidos pelos magistrados já representam 43,67% dos rendimentos líquidos recebidos (que cresceram 21,95% em 2024), segundo a ONG.
“Existem casos vergonhosos de servidores públicos que receberam R$ 300 mil, R$ 500 mil, até R$ 1 milhão em um único mês, com auxílio-moradia, indenizações e penduricalhos que não entram no cálculo do teto. Se quisermos de fato uma reforma administrativa digna desse nome, ela precisa ser firme contra eles”, afirma o senador Fabiano Contarato (PT-ES), um dos poucos parlamentares a falar abertamente sobre os supersalários.
“Penduricalhos” são geralmente instituídos por decisão administrativa dos conselhos do Judiciário e do Ministério Público e classificados como indenizatórios, driblando o teto. Para Pedro Paulo, há um excesso de autonomia para decidir essas questões, “que não deveriam estar intramuros”. Ele enfatiza que os supersalários devem ser enfrentados na reforma administrativa, mas deve haver resistência. “Há uma imensa dificuldade de voto, porque na ‘hora do vamos ver’, há lobby, pressões”, reconhece.
A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) afirma que “todas as verbas recebidas pela magistratura são regulares, pagas com base na lei e na Constituição e não configuram violação ao teto constitucional”, e defende que qualquer proposta de alteração preserve as carreiras de Estado e “respeite a independência e a harmonia entre os Poderes”, acrescentando que discussões sobre despesas devem ser feitas “com base em dados objetivos, sem distorções ou generalizações que comprometam o funcionamento das instituições”. O Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério Público da União não se manifestou.
Fonte: Valor Econômico
Foto: Renato Araújo/Câmara dos Deputados