Rearticulação estatal é condição para conter desmatamento, diz chefe da fiscalização do Ibama

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Analista ambiental do Ibama por uma década, Hugo Loss executava o trabalho tão bem que foi exonerado durante o govenro de Jair Bolsonaro (PL). Ele era coordenador de operações de fiscalização do órgão ambiental até abril de 2020, quando foi obrigado a executar funções burocráticas e impedido de atuar na proteção da Amazônia.

“Os valores estavam invertidos. O governo Bolsonaro não tinha o Ibama como órgão que deveria executar suas atividades. A situação era delicada, mas estávamos obtendo sucesso nas operações”, contou ao Brasil de Fato.

Reconduzido ao cargo em fevereiro, Loss executará uma função estratégica no projeto de “desmatamento zero” até 2030, um compromisso eleitoral de Lula (PT). Mas ele diz que agora o desafio é muito maior. O crime ambiental se conectou com facções ligadas ao tráfico de drogas e acessou cargos de poder na política.

“O governo Bolsonaro é o causador de toda essa tragédia na Amazônia, mas ele também é um efeito da maior organização desse crime. Por um lado, os criminosos se organizaram muito mais e, por outro, as instituições foram mais desorganizadas”, diagnosticou.

Na entrevista exclusiva, Hugo Loss aponta soluções. A mais importante é uma ampla rearticulação institucional que mobilize todas as instituições do Estado pela recuperação do controle territorial da Amazônia. Sem isso, a atuação do fiscal ambiental será, em boa medida, a de “enxugar gelo”.

“O trabalho de redução do desmatamento é agora um trabalho de reorganização das estruturas estatais. Deve-se aumentar a capacidade de força estatal para fazer frente não só na área da fiscalização, mas em todas as outras áreas, principalmente na questão fundiária e na questão produtiva”, avaliou.

Graduado em Ciências Sociais e mestre em Antropologia, Loss é uma das referências no Brasil em repressão contra o garimpo e desmatamento ilegal. Ele defende que o modelo de retomada territorial em curso na Terra Indígena Yanomami seja estendido a outras regiões onde o desmatamento é permanente.

“Talvez, se tivéssemos continuado com o trabalho, conseguiríamos conter e evitar o que está acontecendo hoje na Terra Indígena Yanomami. Naquela época, o problema [do garimpo ilegal] não era tão grave ainda”, lamentou.

Confira a seguir a segunda parte da entrevista. A primeira está disponível aqui.

 

Brasil de Fato: Sem um projeto mais amplo de proteção da Amazônia, o trabalho do fiscal ambiental será, em certa medida, o de “enxugar gelo”. Quais medidas devem ser adotadas para o Brasil atingir o desmatamento zero?

Hugo Loss: A Amazônia mudou muito depois do governo Bolsonaro, não é a mesma Amazônia de quatro anos atrás. A mudança foi principalmente no que diz respeito à maior organização dos criminosos e ao maior acesso deles a cargos de poder. Antes, eles não tinham tanta organização.

Eu sempre digo que o governo Bolsonaro é o causador de toda essa tragédia na Amazônia, mas ele também é um efeito da maior organização desse crime. Por um lado, os criminosos se organizaram muito mais e, por outro, as instituições foram mais desorganizadas. Não só o Ibama, mas também a Funai, a gestão territorial do Incra, enfim, toda a gestão territorial foi sucateada durante esse período.

Então o trabalho de redução do desmatamento é agora um trabalho de reorganização das estruturas estatais. Deve-se aumentar a capacidade de força estatal para fazer frente não só na área da fiscalização, como você disse, mas em todas as outras áreas, principalmente na questão fundiária e na questão produtiva. E não é só um trabalho de desarticulação do crime, mas também um trabalho de rearticulação das instituições.

A gente percebe que ocorreu um processo de quatro anos de legitimação de práticas criminosas na Amazônia e de deslegitimação do trabalho do Estado. Na medida em que essa situação foi criada, demora para você recuperar o poder de dissuasão do Estado. Existem procedimentos e etapas que têm que ser cumpridas. Os órgãos têm que ser estruturados, tem que haver uma política de comunicação social muito mais eficiente, e a retomada dos territórios onde o desmatamento ocorre de forma muito mais permanente.

Os passos para se chegar a uma queda significativa no desmatamento não ocorrem simplesmente com a minha volta ao cargo, nem com a volta do Ibama. Existe toda uma rearticulação institucional que deve ser feita. O governo federal como um todo deve estar mobilizado, todas as instituições. A Polícia Federal deve dar andamento aos inquéritos policiais e prender efetivamente quem está ligado ao crime.

Os grandes garimpeiros precisam ser presos e pagar pelos crimes que estão cometendo, para serem retirados das atividades ilegais. É necessário um processo de regulamentação das atividades da Funai, por exemplo. Atualmente, o pessoal da Funai está enfrentando o crime organizado dentro de terras indígenas, como o PCC [Primeiro Comando da Capital], e não tem porte de arma.

 

Seria preciso dar à Funai poder de polícia…

Exato. É como aquela coisa, se você tem um muro baixo em casa, um ladrão passa, olha lá e não entra. Mas e se ele pular uma vez o muro? Não adianta você manter o muro naquela altura. Você vai ter que erguê-lo duas ou três vezes mais alto. Então foi isso que aconteceu. Em certo momento, o Estado perdeu a sua legitimidade. Foi uma ação coordenada por pessoas que ocuparam os cargos de poder dentro desse Estado.

O objetivo era deslegitimá-lo e dar continuidade à sua atividade criminosa. Agora que eles estão fora do poder, o Estado tem que recuperar toda a sua capacidade e sua força para conseguir atuar. Então, esse trabalho não é simplesmente com o Ibama, mas com a recuperação de algumas pessoas nos cargos-chave do Ibama.

 


Garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (RR) / Divulgação/ISA

 

Como foi trabalhar durante a gestão Bolsonaro e como está sendo no início do governo Lula?

Se você olhar para trás e comparar os posicionamentos… O Lula, enquanto presidente, foi a Roraima e disse que ia acabar com o garimpo na Terra Indígena Yanomami. Em questão de dias, houve o fechamento do espaço aéreo e vimos aquelas cenas de diversos garimpeiros saindo do local.

Percebemos que a fala do presidente tem um papel significativo de conter o garimpo. E certamente a fala de um presidente tem o mesmo efeito quando ele diz o contrário, quando diz que o garimpeiro tem que continuar trabalhando na terra indígena, quando diz que vai deslegitimar as ações dos órgãos de fiscalização, quando fala em “passar a foice” no Ibama [como declarou Bolsonaro].

Foram diversas falas [de Bolsonaro] no sentido de deslegitimar as ações dos órgãos de fiscalização e no sentido de incentivar ou de dar legitimidade aos crimes de garimpo, extração de madeira e desmatamento na Amazônia. Então a gente consegue ver claramente as duas posições [dos presidentes] e os dois efeitos.

 

Durante a gestão de Eduardo Bim no Ibama você foi exonerado do cargo que ocupa hoje. Por que isso aconteceu?

Nós entramos na Terra Indígena Ituna/Itatá, que é uma área de restrição de uso, onde há evidências da presença de índios isolados. Foi a terra indígena mais desmatada do Brasil em 2019, mas conseguimos reduzir o desmatamento a zero por meio de um trabalho intensivo de contenção, dentro da lógica de permanência na área, com equipes de vigilância e busca pela retomada do território. É a mesma lógica que está sendo empregada agora na Terra Indígena Yanomami.

Entramos lá durante a pandemia de covid-19 e focamos em proteger as terras indígenas dos invasores, o que teve um efeito positivo no controle da disseminação da covid-19 entre os indígenas. Nosso objetivo era proteger as terras indígenas. Durante uma operação na Terra Indígena Apyterewa, fui exonerado. Eu estava na operação quando recebi a notícia e retornei a Brasília, onde, poucos dias depois, saiu a exoneração.

 

A que você atribui a sua exoneração?

Eu acredito que foi simplesmente pelo fato de conduzirmos essas operações dentro do contexto em que o governo Bolsonaro não tinha o Ibama como órgão que deveria executar suas atividades. Os valores estavam invertidos. Estávamos em uma situação delicada, mas estávamos obtendo sucesso nas terras indígenas Trincheira/Bacajá e Apyterewa [na época entre as mais desmatadas proporcionalmente no país]. Talvez, se tivéssemos continuado com o trabalho, conseguiríamos conter e evitar o que está acontecendo hoje na Terra Indígena Yanomami. Naquela época, o problema [provocado pelo garimpo ilegal] não era tão grave ainda.

Quando fui exonerado, solicitei que minha lotação fosse mantida na Diretoria de Proteção Ambiental, mas meu pedido foi negado e fui removido para a Diretoria de Licenciamento. Assim, fiquei afastado das atividades de fiscalização. Passei seis meses na Diretoria de Licenciamento, tentando ser removido para outras regiões da Amazônia, mas não obtive sucesso. Finalmente, consegui a remoção para Minas Gerais, onde fiquei impedido de ir para a Amazônia por 414 dias, sem justificativa.

Não tinha justificativa nenhuma. Era covid? Eu não era grupo de risco. Não tinha nenhum tipo de situação que pudesse agravar e comprometer minha saúde. E eu estava disposto a ir para a Amazônia e não fui. Não fui de forma inexplicável. Só voltei a trabalhar depois da decisão do STF [Supremo Tribunal Federal] que afastou a cúpula do Ibama [em meio a uma investigação por exportação ilegal de madeira]. Foi quando mudou a gestão dentro da Diretoria de Proteção Ambiental e aí eu pude retornar para as ações de fiscalização, e retornei justamente para operações na terra Yanomami.

 

O governo Bolsonaro colocou os fiscais ambientais em risco?

Isso era recorrente. Você e vários repórteres devem ter visto: fiscais do Ibama aparecendo na imprensa com rosto tapado e com a voz distorcida, sem poder mostrar sua identidade. Isso já mostra o sentimento que existia na fiscalização durante o governo Bolsonaro e entre os fiscais. Isso ilustra totalmente o clima, a atmosfera que ocorria dentro da fiscalização sob o governo Bolsonaro. Eu mesmo passei por situações como essas. Nem preciso explicar como era, é só a gente lembrar.

 

Fonte: Brasil de Fato

Foto: Divulgação/Ibama